O primeiro encontro do Seminário estes dualismos que nos perseguem terá lugar no próximo dia 14 na Faculdade de Filosofia, das 18h às 19h. Corpo-alma é o primeiro dualismo em análise. Alfredo Dinis, que animará o debate em torno deste dualismo deixa aqui um texto de Joseph Ratzinger retirado da obra Introdução ao Cristianismo, que servirá de referência para a reflexão, e sobre o qual se poderão desde já tecer considerações neste blog, as quais serão tidas em conta durante o debate.
A concepção grega parte do princípio de que o ser humano é formado por duas substâncias originalmente estranhas entre si, sendo uma (o corpo) perecível e a outra (a alma) imperecível, de modo que esta última continua a existir independentemente de qualquer outro ser. Na realidade, só a separação do corpo, que lhe é estranho, abriria à alma a possibilidade de ser ela mesma. O raciocínio bíblico, pelo contrário, pressupõe a unidade indivisa do ser humano, tanto assim que a Bíblia nem tem uma palavra para designar apenas o corpo (separado e distinto da alma); por outro lado, o termo ‘alma’refere-se, na grande maioria dos casos, ao ser humano inteiro, tal como ele existe com a sua corporalidade (…)
A imortalidade não é fruto da evidente impossibilidade do ser indivisível para morrer, mas sim da acção salvadora do amante que tem o poder para o fazer: o ser humano já não pode findar totalmente, porque é conhecido e amado por Deus. Se todo o amor aspira à eternidade, o amor de Deus não só aspira a ela, como cria e é a eternidade (…)
Ao contrário da concepção dualista da imortalidade, que encontra a sua expressão no esquema grego do corpo e da alma, a fórmula bíblica da imortalidade pretende transmitir uma ideia dialogal que abrange o ser humano como um todo: a essência do ser humano, a pessoa, continuará a existir; aquilo que amadureceu durante a existência terrena de espiritualidade corporificada e de corporalidade espiritualizada continuará a existir de outra maneira. E a sua existência prossegue porque vive na memória de Deus (…)
‘Ter alma espiritual’ quer dizer exactamente ser querido, conhecido e amado de modo especial por Deus; ter alma espiritual significa ser-se alguém que é chamado por Deus para um diálogo eterno e que, por isso, é capaz, por sua vez, de conhecer Deus e de lhe responder. Aquilo a que, numa linguagem mais substancialista, chamamos ‘ter alma’, passamos a chamar, numa linguagem mais histórica e actual, ‘ser interlocutor de Deus’.(…)
De resto, neste ponto mostra-se claramente que é impossível, em última análise, fazer uma distinção clara entre ‘natural’ e ‘sobrenatural’.
Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo,
São João do Estoril: Principia, 2005, pp. 254-260.
A concepção grega parte do princípio de que o ser humano é formado por duas substâncias originalmente estranhas entre si, sendo uma (o corpo) perecível e a outra (a alma) imperecível, de modo que esta última continua a existir independentemente de qualquer outro ser. Na realidade, só a separação do corpo, que lhe é estranho, abriria à alma a possibilidade de ser ela mesma. O raciocínio bíblico, pelo contrário, pressupõe a unidade indivisa do ser humano, tanto assim que a Bíblia nem tem uma palavra para designar apenas o corpo (separado e distinto da alma); por outro lado, o termo ‘alma’refere-se, na grande maioria dos casos, ao ser humano inteiro, tal como ele existe com a sua corporalidade (…)
A imortalidade não é fruto da evidente impossibilidade do ser indivisível para morrer, mas sim da acção salvadora do amante que tem o poder para o fazer: o ser humano já não pode findar totalmente, porque é conhecido e amado por Deus. Se todo o amor aspira à eternidade, o amor de Deus não só aspira a ela, como cria e é a eternidade (…)
Ao contrário da concepção dualista da imortalidade, que encontra a sua expressão no esquema grego do corpo e da alma, a fórmula bíblica da imortalidade pretende transmitir uma ideia dialogal que abrange o ser humano como um todo: a essência do ser humano, a pessoa, continuará a existir; aquilo que amadureceu durante a existência terrena de espiritualidade corporificada e de corporalidade espiritualizada continuará a existir de outra maneira. E a sua existência prossegue porque vive na memória de Deus (…)
‘Ter alma espiritual’ quer dizer exactamente ser querido, conhecido e amado de modo especial por Deus; ter alma espiritual significa ser-se alguém que é chamado por Deus para um diálogo eterno e que, por isso, é capaz, por sua vez, de conhecer Deus e de lhe responder. Aquilo a que, numa linguagem mais substancialista, chamamos ‘ter alma’, passamos a chamar, numa linguagem mais histórica e actual, ‘ser interlocutor de Deus’.(…)
De resto, neste ponto mostra-se claramente que é impossível, em última análise, fazer uma distinção clara entre ‘natural’ e ‘sobrenatural’.
Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo,
São João do Estoril: Principia, 2005, pp. 254-260.
7 comentários:
Este é um assunto que me fascina e ao qual gosto de dedicar tempo.
Nestes dois últimos meses tive a felicidade de dar aulas no Seminário Médio, aqui na cidade da Beira, percorrendo o tema do dualismo "alma-corpo". Foi muito bom provocar os futuros padres nas suas concepções dualistas. Deu para perceber que para além da concepção antropológica dualista há também enraizada a distinção entre profano e sagrado. Claro que o corpo é profano, e por isso mau e desprezável (e desprezível) uma prisão para a alma. Por outro lado a alma é boa, divina, sagrada. Até parece que estou a ver o carro alado que Platão (ou Sócrates) descreve em "Fedro".
Numa das aulas estivemos a ver este mesmo texto do Cardeal Joseph Ratzinger. Chamo particularmente a atenção para o último paragrafo citado. Distinções entre sagrado e profano? Como? não é tudo criação de Deus? Claro que há sempre o espectro do mistério da iniquidade a rondar estes problemas, mas isso fica para outro comentário.
Bom Seminário para todos!
Um abraço do hemisfério sul...
Marco Cunha, SJ
Outro abraço também do hemisfério sul (Brasil) e em especial ao Alfredo Dinis com quem tive o privilégio de partilhar atividades pedagógicas em Portugal.
Aposentado profissionalmente como Professor de Filosofia, luto para não o fazer intelectualmente, e por isso aproveito esta oportunidade,ainda que virtual, para pensar um pouco sobre o tema proposto: o dos Dualismos (que nos perseguem).
Sem desprezar a importância do dualismo sugerido (CORPO/ALMA) acredito que se a Linguagem é o Meu Mundo (como diria Wittgenstein)e os limites daquela serão os limites deste, então poderiamos dis-correr sobre o Dualismo como uma bivalência, à maneira das tabelas de verdade na Lógica!
Ora se sabemos que inicialmente, desde Aristóteles, o binómio de valores de Verdade era composto pelo Verdadeiro e pelo Falso, que sustentou por muito tempo o caráter bivalente da Lógica, todos sabemos que se foi evoluindo no sentido de entendermos que a Lógica é, no minimo, trivalente (V, F e Indeterminado) e muito provávelmente Polivalente ou Modal com valores como o Necessário, o Suficiente, o Possivel etc...
O tema que gostava de colocar aqui como contribuição para o Seminário ao qual por motivos,pelo menos, geográficos não poderei estar presente, era o seguinte:
1. Admitamos como ponto de partida o dualismo Corpo/Alma
2. Admitamos que existe uma polivalência de valores em nosso raciocinio lógico (independentemente de qualquer pressuposto religioso)
3. Admitamos que o que fôr aceitável para a construção da Linguagem (Logos) o será também para a compreensão do Mundo e do Homem.
Neste caso: a pergunta que urge fazer é a seguinte:
Se o Corpo e a Alma são duas realidades antropormóficas aceites, e a polivalência é o sistema correto numa argumentação lógica, onde estão os outros 'Valores' que graduariam esse dualismo num pluralismo que, naturalmente, se pressupõe como existente em qualquer tipo de DIS-CUSSÃO?
Obrigado pela atenção e todo o sucesso nesta iniciativa!
Francisco Costa Félix
Caro Doutor Costa Félix, as minhas cordiais saudações, recordando os bons velhos tempos da nossa colaboração académica. Muito obrigado pelo seu interessante comentário ao tema dos dualismos. A perspectiva da linguagem e da lógica é sempre desafiadora, e agradeço-lhe por tê-la introduzido no debate. Naturalmente que há duas atitudes possíveis perante os dualismos - duas atitudes..., ai estes dualismos! - pressupor a sua existência ou abandoná-la. Se pressupomos a sua existência, que tipo de existência lhe atribuímos? Puramente mental? Puramente linguística? Se abandonamos o pressuposto da sua existência, o que ganhamos e perdemos com isso? Naturalmente que o debate deveria tocar não apenas o nível puramente teórico e académico - se é que existe tal nível puro... - mas o da concreta existência dos seres humanos que nós somos, frágeis e caducos, mas com sonhos de eternidade... Um abraço.
Caro Padre Alfredo
esta é uma óptima iniciativa. Prometo que um dests dias passo por aqui para deixar um contributo. Bom seminário
Gostaria muito de felicitar o Pde. Alfredo por esta iniciativa. É actual, interessante, entusiasmante e urgente. Porém, fiquei a pensar: serão os dualismos que nos perseguem? Ou será antes a "ausência de resposta", ou alternativa relativamente aos dualismos que nos persegue? Sobre essa alternativa, li recentemente no "Manifesto da Transdisciplinaridade" de Basarab Nicolescu que "A transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade que opõe os pares binários: sujeito/objecto, subjectividade/objectividade, matéria/consciência, natureza/divino, simplicidade/complexidade, reducionismo/holismo, diversidade/unidade. Esta dualidade é transgredida pela unidade aberta que engloba tanto o Universo como o ser humano." (p. 62, TRIOM, São Paulo, 2001)
Será então uma abordagem "transcisciplinar" uma alternativa para resolver "estes dualismos que nos perseguem", colocando-os em diálogo? Talvez seja a este ponto importante referir como Nicolescu define "transcisciplinaridade": "A transdisciplinaridade ...diz respeito a tudo o que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. O seu objectivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento" (p.51) Cá está! A unidade e não a uniformidade do conhecimento. Logo, ao pensar no dualismo corpo/alma, tentei perceber qual seria a sua abordagem transdisciplinar. Quanto reli as palavras no texto de Ratzinger onde refere "espiritualidade corporificada e de corporalidade espiritualizada", pensei no ser relacional cuja espiritualidade "e" corporalidade correspondem a dois níveis diferentes da realidade que o constitui, mas cuja unidade se revela transformadora (corporificada e espiritualizada). Se assim for, a visão transdisciplinar seria aquela que harmoniza os diferentes níveis de realidade corporal e espiritual, por forma a atingir uma visão mais integral do que significa "ser humano". Como hamonizá-los? É para isso que dialogamos, tal como irão fazer no dia 14.
Desejo por isso uma boa reflexão a todos e agradeço esta iniciativa à qual não posso assistir (vivo em Lisboa), mas à qual me uno através deste blog.
caro Miguel, obrigado pelo teu interessantíssimo comentário. Vou reflectir sobre ele, e certamente que me vai inspirar no encontro de amanhã.Cordiais saudações.
O que me parece é que a reflexão do Cardeal Ratzinger parte, na crítica ao dualismo grego corpo/alma, de um mesmo pressuposto substancialista, a saber, o pressuposto de que a alma é uma substância “espiritual-corporificada” ou “corporal-espiritualizada”. É certo que também fala de “diálogo” e “chamamento” e que essa retórica politicamente correcta (a lembrar o envelhecido Habermas) induz certa percepção de dessubstancialização. Mas essa indução é ilusória, uma vez que a ideia de “diálogo” sempre nos conduz para a existência de um alter e de um ego que, ainda que de modo erótico, sempre se opõem. Por outro lado, o que o conceito de “chamamento” coloca no domínio do discurso e da conversão é a ideia de uma exterioridade, que, no caso, não é mais que uma substancialidade. O lado de fora absoluto, que chama, e não meramente um fora relativo ou propedêutico, meramente perturbador, visando um novo e mais fundo mergulho dentro de si, não é mais que uma outra forma de substancialidade, ainda que delicodoce. Falta saber se também não é uma forma de alienação.
Por último, este moderno reducionismo de Ratzinger, assimilando o humano, e o divino, ao natural, corre o risco de nem salvar o humano nem o divino, nem o natural nem o sobrenatural. O dualismo, pelo menos como ficção, é o mecanismo pelo qual nos elevamos acima da nossa experiência de primeira ordem e nos fazemos mais que uma cegueira, ou ponto cego/buraco negro em que toda a luz morre ainda antes de nascer. Ratzinger parece esmagar o olho até ao ponto em que o nervo óptico depara directamente com o mundo, o que tem o efeito, como se sabe, de impedir toda a visão, já que o cérebro e o nervo óptico precisam do olho para ver, de algo que o duplique para que a sua potência de ver se torne acto de visão.
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