O próximo debate sobre 'estes dualismos' terá lugar no próximo dia 27, às 18h, na Faculdade de Filosofia. O seguinte texto lança o debate.
Dualismo Corpo-Mente:
algumas reflexões introdutórias
João Carlos Major
algumas reflexões introdutórias
João Carlos Major
Partindo da pressuposição de sermos apenas objectos físicos, ainda que assaz complexos, muitos investigadores defendem que o mental é um estado do físico e que a nossa vida psíquica pode ser reduzida ao produto de uma série de eventos físicos, químicos e eléctricos que ocorrem no nosso cérebro e em todo o corpo, o que cada vez mais parece ser corroborado pelas investigações que colocam de manifesto a influência do orgânico nos nossos estados mentais, pensamentos, emoções e afins.
Na senda do behaviorismo[1] e do positivismo lógico[2], as neurociências de hoje colocam cada vez mais a nu os sistemas neurais que nos permitem ter estados mentais e auto-consciência. Não é de estranhar, como tal, que as inúmeras descobertas do âmbito empírico sustentem as chamadas teorias da identidade, que postulam que os estados mentais não são apenas influenciados pelos estados cerebrais mas que são os próprios estados físicos do cérebro. E parece que os avanços da ciência vão dar, em parte, cada vez mais razão a esta posição. Por isso, uma das actuais linhas de investigação em neurociência procura identificar o correlato neural da consciência, dos comportamentos éticos[3], etc.
Tais teorias identitárias, levadas às últimas consequências, estão na base do materialismo eliminativista, o qual chama à atenção os casos bem sucedidos de pura eliminação de antigas teorias explanatórias, substanciadas, por exemplo, em hipotéticos elementos tal como o flogisto ― que era um fluido imaginado pelos químicos de outrora para explicar a combustão[4]. Assim, o materialista eliminitivista espera um desenlace semelhante, procurando a eliminação pura e simples das antigas ontologias explicativas de carácter dualista e substancialista em favor de uma teoria nova e superior, ansiando com o dia em que as neurociências estejam suficientemente amadurecidas para banir, de uma vez por todas, as nossas limitadas compreensões.
Vocábulos como “desejo”, “dor” ou “crença”, nada mais serão que fantasias emanadas das nossas estruturas neuronais; as mesmas que permitem a maior de todas as ilusões: a de possuirmos consciência, que agora passa a ser entendida como um mero epifenómeno. Por conseguinte, a linguagem da psicologia popular deveria ser abandonada em favor dos conceitos da neurociência. Tal eliminativismo é uma forma recente e radical de naturalismo materialista. Para este, tanto o mental como o corpóreo se apresentam como meras expressões linguísticas, partes de um mundo conceptual definido no âmbito da linguagem e sem um maior alcance do que isso.
Mais do que uma identificação de um com o outro, como faz a perspectiva identitária, o materialismo eliminitivista procura a eliminação de todas as antigas explicações e dos termos da psicologia do senso comum em prol de uma nova e radical forma de compreensão puramente científica[5]. Ainda que a psicologia popular, isto é, o esforço diário dos seres humanos em busca de uma compreensão simples e abrangente da realidade, em muitos casos funcione, podendo até ser o primeiro passo para uma compreensão reducionista, cientistas como Francis Crick[6] e filósofos a eles ligados, como Paul e Patricia Churchland[7], tendem a considerar esta estratégia como tempo perdido. Segundo eles, se o que almejamos é a redução, porque não iniciá‑la desde já? Então, urge olhar para dentro da caixa negra e observar como os seus componentes se comportam.
É a posição redutora a que apresenta mais adeptos no âmbito das fileiras da ciência. Afinal, aparece como a mais próxima da investigação empírica e dos factos da natureza.
Por outro lado, a corrente oposta – o fisicalismo não‑redutor[8] – procura contrastar a crua declaração do fisicalismo redutor, na qual se defende que a natureza é tudo, e que da matéria veio tudo o que existe, sendo tudo explicado pela própria matéria e suas leis. Em sentido contrário, o fisicalismo não‑redutor pretende superar este tipo de visão pela defesa da existência de um nível ontológico superveniente à matéria, mas sem invocar qualquer tipo de dualismo.
Tal perspectiva considera que, pelo menos algumas propriedades de um nível mais elevado, em particular as propriedades cognitivas e/ou psicológicas, formam um domínio autónomo e irredutível ao físico. Isto significa que a psicologia é uma ciência especial cujo objecto é investigar as relações envolvidas nessas alegadamente irredutíveis propriedades e explicá‑las nos seus próprios termos. Desta forma, tais leis e explicações não poderão ser formuladas em termos puramente físicos. Por conseguinte, tal doutrina defende a autonomia da psicologia e, de uma forma genérica, a autonomia das ciências especiais em relação à física de base.
Neste contexto, frequentemente é evocada a noção de “emergência”, que é o processo de derivar novas e coerentes estruturas, padrões ou propriedades (em especial a consciência e a intencionalidade) de um sistema complexo. Os fenómenos emergentes ocorrem devido ao padrão de interacções entre os elementos de um sistema ao largo do tempo. Tais fenómenos são normalmente imprevistos, são o resultado não esperado de interacções relativamente simples entre componentes também relativamente simples. Neste sentido, o que distingue um sistema complexo de um meramente complicado é que os padrões de funcionamento e os comportamentos de um sistema complexo emergem como o resultado das relações de elementos menos complexos e, até, elementares. Assim, as características emergentes surgem quando um número de entidades simples, ou agentes, operando em conjunto, manifestam comportamentos mais complexos, fazendo com que um sistema composto de elementos mais simples produza propriedades que as suas partes constituintes em si não possuem. Para complicar ainda mais, estas novas propriedades aparentemente possuem poderes causais sobre o que as rodeia e, por vezes, sobre os seus próprios elementos de base.
Um exemplo de emergência é o da água (H2O). A água pode encontrar‑se macroscopicamente em diferentes estados físicos (sólido, líquido e gasoso), mas as moléculas que a constituem (o hidrogénio e o oxigénio) não possuem tais propriedades. O comportamento complexo ou as propriedades emergentes não são uma característica dos agentes considerados individualmente, nem podem ser, normalmente, preditos ou deduzidos do comportamento das entidades mais baixas de tal hierarquia. É a partir da organização e da interdependência entre as várias moléculas que constituem a água que a emergência de tais características acontece, ainda que não sejam compartilhadas por nenhum dos gases isoladamente, mas surgem porque passaram a pertencer a um sistema de um nível hierárquico superior: o da água.
O número e a subtileza destas propriedades pode ser, por conseguinte, muito maior à medida que se aumente o número de agentes. É o que acontece quanto ao número de modos com que podemos empilhar objectos num determinado local, o número de modos aumenta exponencialmente se formos aumentando o número de objectos. Por sua vez, as propriedades emergentes podem surgir não apenas entre as partes simples de um sistema, mas também entre propriedades já de si emergentes, elevando a complexidade, porventura, para além da capacidade do intelecto humano.
De acordo com esta visão emergentista e sistémica, pode dizer‑se que a mente emerge das conexões entre os neurónios e, desde uma tal perspectiva, não é necessário pressupor a existência de uma “alma” para explicar o facto de um cérebro poder ser inteligente, mesmo que os neurónios considerados isoladamente não o sejam. Embora a mente (como a inteligência e a auto‑consciência) seja um processo acrescido dos processos cerebrais, não existe fora da nossa membrana, que é a pele. Ou seja, não é uma substância que existe “lá fora”, como em Descartes, onde tem uma substancialidade à parte.
O problema parece surgir quando tais propriedades sistémicas ou emergentes parecem ganhar vida própria, passando, aparentemente, a ter um estranho controlo ou poder causal sobre as suas partes constituintes.
É sobre estes e outros aspectos que procuraremos reflectir na palestra do próximo dia 27.
[1]Que não procurou “negar” a existência dos estados mentais, antes desejou aplicar os cânones da ciência, isto é, os ideais de previsibilidade e controlabilidade, na consideração dos eventos privados, no sentido de tornar científico e sistemático o projecto de pesquisa da conduta humana.
[2]Que influenciou a posição behaviorista na medida em que o significado de uma sentença estaria ligado ao exame das circunstâncias observáveis, o que levaria a verificar a validade de uma sentença proferida.
[3]Cfr. Steven Marcus (Ed.), Neuroethics: Mapping the Field (San Francisco: Dana Foundation, 2002).
[4]As investigações de Lavoisier, completando os trabalhos de Priestley e Cavendish, destronaram a teoria do flogístico ou flogisto, interpretando correctamente calcinações, combustões e outras reacções de oxidação, lançando deste modo os fundamentos da análise orgânica quantitativa. As suas teorias tornaram‑se conhecidas através do Traité Élementaire de Chimie, publicado em 1789.
[5]Cfr. Paul Churchland, Matter and Consciousness, p. 43.
[6]Cfr. Francis Crick, A Hipótese Espantosa: A Busca Científica da Alma (Lisboa: Instituto Piaget, 2000).
[7]Patricia Churchland, “Can Neurobiology Teach Us Anything About Consciousness?”, in Harold Morowitz; Jerome Singer (Eds.), The Mind, The Brain, and Complex Adaptive Systems (Reading: Addison‑Wesley, 1995), pp. 99‑121.
[8]Por vezes chamado de “dualismo de propriedades” (cfr. Jaegwon Kim, “Physicalism”, in Robert Wilson; Frank Keil (Eds.), The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, p. 645).
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