terça-feira, 11 de março de 2008

a bruxa e o inquisidor

Na próxima quarta-feira, 12 de Março, haverá mais um encontro sobre 'estes dualismos', na Faculdade de Filosofia, sala 3.1 às 18h.
A BRUXA E O INQUISIDOR:UMA REFLEXÃO SOBRE A LIBERDADE E O MEDO QUE TEMOS DELA
PROF. MANUEL CURADO(Universidade do Minho) Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga, 12 de Março de 2008
NOTAS DE REFLEXÃO
Não tenho a certeza de que o que irei afirmar seja verdadeiro ou, até mesmo, plausível. É muito provável que sejam ideias apressadas, tontas e sem fundamento. Qualquer pessoa sensata deve desconfiar de forma deliberada da sua capacidade para compreender assuntos que a própria pessoa não inventou ou criou. Se esta é a situação geral do conhecimento, quando os assuntos dizem respeito à história humana deverá existir um cuidado muito maior, isto é, uma recusa da arrogância natural da inteligência humana em compreender os assuntos e em acreditar em que pode compreender o que quer que seja. Os assuntos que agora nos reúnem são de natureza histórica.
Apesar de existirem muitos estudos sobre as relações entre o Cristianismo e o Paganismo, os documentos que chegaram até nós estão dramaticamente enviesados e ninguém sabe qual a interpretação a dar a muitos deles. Penso que esta Biblioteca Negra (negra por várias razões) não é decorativa mas aponta para aspectos muito importantes da natureza humana. A minha interpretação das obras de Pierre de Lancre, Krämer e Sprenger, Nider, Henry Borguet e de tantos outros é a de que descrevem em conjunto uma Alegoria da Liberdade. Cada uma delas é um catálogo de comportamentos possíveis e impossíveis, permitidos e proibidos, desejados e amaldiçoados. Todas têm em comum a crença espantosa de que o comportamento humano é significativo e não um teatro inconsequente. Como é que actos realizados em privado ou na esfera doméstica podem ter consequências para além do próprio indivíduo?
Estes textos oferecem uma vertigem de liberdade porque descrevem uma vasta quantidade de comportamentos possíveis. Porém, apesar de os autores desses livros acreditarem que muitos comportamentos são possíveis (aliás, eles acreditam mais nisso do que nós), não os julgam aceitáveis. Estes livros negros são, pois, atravessados por uma dialéctica entre a liberdade extrema e a proibição violenta de comportamentos privados, domésticos ou realizados em pequenas comunidades. Penso que a vasta biblioteca intelectual que nos chegou da época da Caça às Bruxas (intelectual porque os testemunhos populares perderam-se quase totalmente) é um património precioso por várias razões. Essa biblioteca obriga-nos a pensar sobre a liberdade, a violência legítima e ilegítima, a relação dos seres humanos com os outros Poderes do mundo e, ouro sobre azul, sobre o que há no mundo e que tipo de seres existem.
Todos os intelectuais contemporâneos, sobretudo os cientistas, deveriam passar os olhos por este tipo de literatura antiga. Os milhares de páginas deste espólio são atravessados pelo sentimento de evidência. Os seus autores sentem e acreditam que é evidente o que afirmam sobre o que está e se passa no mundo. Para nós, nada do que escreveram é evidente. Por exemplo, custa-nos a aceitar que uma das profissões mais nobres e elevadas do início da Modernidade fosse a de Demonólogo. No entanto, os demonólogos eram conselheiros de Príncipes e da Santa Sé. O que se alterou, pois? O mundo já não tem o que eles afirmaram que tinha? Nunca teve? Teve e deixou de ter? O mundo alterou-se ou fomos nós que nos alterámos? A hipótese que proponho é a de que as narrativas sobre o Mal e o Bem assinadas por Inquisidores e outros Controladores da Liberdade desempenham um papel importante na organização da vida.
O sistema de proibições e de permissões obriga à existência de controladores do comportamento de outrem. Não penso que a Biblioteca Negra da Europa seja importante pelos seus correlatos, isto é, pelas descrições que faz sobre o que existe e não existe. Penso que essa Biblioteca é importante porque mostra o modo de actuação do Poder. O realismo fantástico que caracteriza a Biblioteca Negra propõe uma tese radical sobre a liberdade dos seres humanos: tudo é possível, tudo mesmo, incluindo a violação das leis da natureza e da sociedade humana. Um símbolo eloquente dessa liberdade extrema encontra-se na figura da Bruxa. Esta liberdade superior ao que se pode pensar foi sempre sistematicamente combatida, violenta e militarmente combatida por muitos tipos humanos que simplifico na figura dos Inquisidores. Ao pensar na atracção fatal entre estas duas possibilidades de se ser um ser humano, não se pode deixar de pensar sobre o que está em causa.
A minha ideia é a de que o que está em causa no bailado histórico entre Bruxas e Inquisidores é o catálogo do que existe, do que está no mundo. As Bruxas queimadas e os Inquisidores que as queimaram têm em comum uma obsessão pela Realidade, sobre o que é e não é real, procurando as primeiras alargar a visão do real e esforçando-se os segundos para limitar o catálogo do real. O que eles nos deixaram foi uma maravilhosa e trágica Metafísica em movimento. Reafirmo o que disse no início: é muito provável que não tenha nada de interessante a dizer sobre assuntos que ultrapassam a minha inteligência e experiência. Só me dou ao incómodo de abordar estes temas porque estes assuntos não ultrapassam a minha curiosidade.

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