terça-feira, 29 de abril de 2008

Sagrado-profano

No dia 30 de Abril, quarta-feira, o Doutor Miguel Dias Costa apresentará na Faculdade de Filosofia, às 18h, sala 3.1, o dualismo sagrado-profano.

Tópicos para discussão:

“O tremendum, o elemento repulsivo do numinoso, esquematiza-se pelas ideias racionais de justiça, de vontade moral […], o fascinans, o elemento cativante do numinoso, esquematiza-se pela bondade, pela misericórdia, pelo amor”.
R. Otto


“A primeira definição que pode dar-se do sagrado, é que ele se opõe ao profano”.
“O homem profano é o descendente do homo religiosus e não pode anular a sua própria história”.
M. Eliade

“Nós acabámos de dizer: a violência e o sagrado. Nós poderíamos dizer igualmente: a violência ou o sagrado. O jogo do sagrado e da violência não é senão um e o mesmo”.
R. Girard

quarta-feira, 16 de abril de 2008

dualismo homem-mulher

Este dualismo será apresentado hoje, dia 16 de Abril, pela Doutora Maria de Fátima Lobo, por não ter sido possível a sua apresentação no passado dia 9.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Dualismo: Homem-Mulher

Na próxima quarta-feira, 9 de Abril, terá lugar na Faculdade de Filosofia, das 18h às 19h, um debate sobre o dualismo homem-mulher, apresentado pela Doutora Maria de Fátima Lobo, docente de Psicologia da Faculdade de Filosofia. O seguinte texto lança desde já o debate.



A mulher portuguesa tem vindo a conquistar progressivamente o seu espaço de intervenção. Ocupa, actualmente, sectores profissionais tradicionalmente masculinos – Saúde, Ensino Superior, Justiça (Guinote, P. J. A., 2003) -, mas continua a apresentar deficit de participação na propriedade do capital, na administração de empresas transnacionais, nos sectores estratégicos, nas instância de concertação mundial e nas decisões estratégicas político-económico-militar (Silva, M., 2003; Hofstede, G., 1997), nem sempre a comunidade científica analisa com imparcialidade o desempenho feminino (Esteves, J., 2003) e não são implementadas medida activas de incentivo à participação nos órgãos de poder político (Viegas, J. M. L. & Faria, S., 1999). Contudo, reportando-nos a dados de 2005, os indicadores estatísticos apontam para níveis de escolarização femininos mais elevados: entre os 20 e os 24 anos, 56% das mulheres e 40,4% dos homens completaram o ensino secundário; no mesmo ano, 30,1% das mulheres entre os 18 e os 24 anos e 46,7% dos homens com a mesma idade, abandonaram a escola e, no ano lectivo 2003-2004, cerca de 66% dos diplomados do ensino superior eram mulheres.

Embora os valores da participação política feminina sejam, ainda, bastante modestos, têm vindo a aumentar significativamente se consideramos que apenas em 1931 foi concedido direito de voto às mulheres portuguesas, desde que possuíssem formação universitária ou conclusão do ensino secundário; a Constituição de 1933 embora consagrando a igualdade dos cidadãos perante a lei estabelecia excepções de natureza e de interesses familiares para as mulheres; as mulheres, em número de três, tiveram acesso pela primeira vez à Assembleia da República no ano de 1935 e, apenas, em 1971, uma mulher foi integrada no Governo da República - Maria Teresa Lobo, Subsecretária de Estado da Segurança Social-. A situação modificou-se significativamente após 1974. Contudo, a alta Magistratura da Nação foi desempenhada sempre por homens, o cargo de Primeiro Ministro foi ocupado, apenas, uma vez por uma mulher, durante um período limitado - Maria de Lurdes Pintassilgo -, nenhuma mulher ocupa lugar de chefia nos partidos políticos representados na Assembleia da República e segundo o relatório efectuado em 1997, apenas 26,9 % do total das funções autárquicas ao nível municipal são desempenhadas por mulheres (Saint-Maurice, et. al., 1997: 4); o grupo etário mais numeroso situa-se entre os 40 e os 49 anos, com habilitações literárias correspondentes ao bacharelato (28%) e licenciatura (31%), são mulheres activas profissionalmente e, predominantemente, trabalhadoras por conta de outrem; as formações político-partidárias raramente apresentam uma mulher para cabeça de lista, sendo estas colocadas, quase sempre, em posições secundárias e muitas vezes em situação não elegível. Existe, portanto, uma razão imediata que pode ser interpretada à luz das dinâmicas partidárias.
José Pacheco Pereira num artigo de opinião (Público, 2.02.06: 7) identifica um conjunto de técnicas de filiação - «Havia casos em que os militante nem sequer existiam, eram fantasmas. Moravam todos numa única casa, para terem uma concentração numa secção quando era útil em termos de sindicato de voto ganhar as eleições. Falava-se de um talho, ou de um número numa rua que era um tapume, e onde moravam dezenas de militantes» (Pereira, J. Pacheco, 2006: 7) -, de estratégias para ganhar eleições no interior dos partidos -«O controlo dos cadernos eleitorais e de registos de filiação, das listas de mailing e outras, eram essenciais para manipular eleições» (Pereira, J. Pacheco, 2006: 7-, e de práticas corporativas que acentuam o proteccionismo de grupos restritos - «Esperava-se que actuasse da melhor maneira para gerir as carreiras políticas que dele dependiam, que alargasse o campo da empregabilidade para cada um e sua família, fizesse um upgrade dos empregos e, em tempos infaustos, que não os perdesse. Esperava-se que fosse o chefe do sindicato de dentro, não o interprete das esperanças de fora» (Pereira, J. Pacheco, 2006: 7) -. As lógicas partidárias entregues, quase sempre, a minorias de agentes locais estrategicamente posicionados para mutuamente se protegerem, são obstáculos estruturais objectivos não só à participação política feminina como a outros agentes destabilizadores do status quo.
Se acrescentarmos a estes factores, a estrutura familiar, a partilha dos trabalhos domésticos (Perista, Heloísa, 2002), o mercado de trabalho, as políticas sociais de apoio à família, os horários das reuniões dos partidos políticos, entre outros, compreender-se-á que a questão da participação política feminina constitui um dos problemas centrais da sociedade actual, principalmente porque através dele, enquanto factor indiciador, é possível interpretar a estrutura social, familiar, a democracia, a exclusão social, os sensores éticos, os sistemas de crenças e de valores, as identidades, as políticas sociais de apoio à família, os sistemas educativos, os modelos científicos, os enquadramentos religiosos e a vitalidade das instituições.

Cada época constrói o seu sistema de representações, de signos e de imagens. Coexistem várias construções da feminilidade, construções acumuladas ao longo das diferentes épocas. Até ao século XIX foram «produzidas por homens. As mulheres não se representavam a si próprias. Eram representadas» (Duby, G., 1992: 14). O masculino assume o poder de representar e de definir. O feminino e a sua identidade são definidos de modo diferido. As mulheres são entidades ausentes da sua própria definição e alheias aos espaços onde os homens as definem.

A construção dos espaços e da organização social implícita faz parte do poder masculino de representar e de definir. Georges Duby (1992), através da análise retrospectiva das «Imagens da Mulher», considera que estas «ficaram reduzidas a uma posição marginal. Em todos os momentos das sua história, a nossa sociedade, como provavelmente todas as sociedades do mundo, impunha-lhes que contribuíssem para os atractivos do lar, trabalhando para o ornamentar. Os ornamentos do espaço doméstico, assim como os do corpo, sempre foram competência da mulher» (Duby, G., 1992: 14). O espaço, enquanto entidade física e representacional, constituiu-se, ao longo do tempo histórico, como categoria social. Os espaços deixaram de ser neutros: espaços femininos e espaços masculinos. O espaço feminino é interior, o espaço masculino é exterior (Lobo, Fátima, 2005; Hofstede, G., 1997: 54).
O espaço não possui, apenas, extensão; possui, também, significação. Georges Duby afirma: «Até uma época muito recente, a burguesia comprazia-se em ver as mulheres preencherem a sua actividade interessando-se pela aguarela, do mesmo modo que tocavam piano para repouso e orgulho de seus pais e de seus maridos. Mas se uma delas decidisse ir mais longe e se, transgredindo as proibições, conseguisse aproximar-se das altas esferas da verdadeira criação, era apontada a dedo, denunciada como excêntrica» (Duby, G., 1992: 17). A excentricidade era aferida a partir do grau de afastamento do centro do espaço feminino que, por sua vez, estava indexado a um conceito de família. A categoria meta-social suporta a diferenciação de papéis.

Estabelecem-se consensos, mas se o consenso no século XIX se estabeleceu em torno do «ideal feminino: a mulher burguesa no lar» (Higonnet, A., 1992: 140), se entre os séculos XVI-XVIII, o arquétipo de mulher concilia «o mundo cristão e o mundo natural, o inteligível e o sensível. Idealização, depuração da matéria do corpo (…) a forma sublimada de uma mulher perfeitíssima remete o invólucro carnal para a sua essência espiritual» (Cornette, Joel, 1992: 108), na Idade Média, se enaltece o amor cortês, a sedução, a intimidade profana, a dor, o pudor, a fadiga e o segredo e se assume o arquétipo de Eva, «que não soube resistir à serpente, mas consegue em compensação, tornar-se irresistível aos olhos dos seu companheiro» (Frugoni, Chiara, 1992: 83) e, na mitologia pagã, as «representações tentam reduzi-la aos seus menores denominadores comuns: a procriação, a conservação, o prazer» (Rouche, Michel, 1992: 36).

Permanecerá, a mulher do século XXI, vinculada à ideia de companheira nos jogos eróticos, mãe protectora e consoladora, subalterna, submissa (Duby, G., 1992: 18-19), doméstica, fada do lar, ou a situação da mulher do século XXI é mais complexa, porque se divide pela profissão, pela maternidade, pelas novas representações de prazer e desempenho sexual, pelo trabalho doméstico, pela educação dos descendentes e apoio aos ascendentes, pelas exigência de beleza, da moda, de vida saudável, de aparência e até de linguagens?


Referências bibliográficas:
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terça-feira, 1 de abril de 2008

ensinar-aprender

Na próxima quarta-feira, 2 de Abril, às 18h, na sala 3.1, a Doutora Susana Moreira, docente do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, apresentará o dualismo sobre 'ensinar-aprender', que esteve agendado para o dia 5 de Março e que não chegou a ter lugar. O texto foi anteriormente apresentado neste blog e lança novamente o debate.

terça-feira, 11 de março de 2008

a bruxa e o inquisidor

Na próxima quarta-feira, 12 de Março, haverá mais um encontro sobre 'estes dualismos', na Faculdade de Filosofia, sala 3.1 às 18h.
A BRUXA E O INQUISIDOR:UMA REFLEXÃO SOBRE A LIBERDADE E O MEDO QUE TEMOS DELA
PROF. MANUEL CURADO(Universidade do Minho) Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga, 12 de Março de 2008
NOTAS DE REFLEXÃO
Não tenho a certeza de que o que irei afirmar seja verdadeiro ou, até mesmo, plausível. É muito provável que sejam ideias apressadas, tontas e sem fundamento. Qualquer pessoa sensata deve desconfiar de forma deliberada da sua capacidade para compreender assuntos que a própria pessoa não inventou ou criou. Se esta é a situação geral do conhecimento, quando os assuntos dizem respeito à história humana deverá existir um cuidado muito maior, isto é, uma recusa da arrogância natural da inteligência humana em compreender os assuntos e em acreditar em que pode compreender o que quer que seja. Os assuntos que agora nos reúnem são de natureza histórica.
Apesar de existirem muitos estudos sobre as relações entre o Cristianismo e o Paganismo, os documentos que chegaram até nós estão dramaticamente enviesados e ninguém sabe qual a interpretação a dar a muitos deles. Penso que esta Biblioteca Negra (negra por várias razões) não é decorativa mas aponta para aspectos muito importantes da natureza humana. A minha interpretação das obras de Pierre de Lancre, Krämer e Sprenger, Nider, Henry Borguet e de tantos outros é a de que descrevem em conjunto uma Alegoria da Liberdade. Cada uma delas é um catálogo de comportamentos possíveis e impossíveis, permitidos e proibidos, desejados e amaldiçoados. Todas têm em comum a crença espantosa de que o comportamento humano é significativo e não um teatro inconsequente. Como é que actos realizados em privado ou na esfera doméstica podem ter consequências para além do próprio indivíduo?
Estes textos oferecem uma vertigem de liberdade porque descrevem uma vasta quantidade de comportamentos possíveis. Porém, apesar de os autores desses livros acreditarem que muitos comportamentos são possíveis (aliás, eles acreditam mais nisso do que nós), não os julgam aceitáveis. Estes livros negros são, pois, atravessados por uma dialéctica entre a liberdade extrema e a proibição violenta de comportamentos privados, domésticos ou realizados em pequenas comunidades. Penso que a vasta biblioteca intelectual que nos chegou da época da Caça às Bruxas (intelectual porque os testemunhos populares perderam-se quase totalmente) é um património precioso por várias razões. Essa biblioteca obriga-nos a pensar sobre a liberdade, a violência legítima e ilegítima, a relação dos seres humanos com os outros Poderes do mundo e, ouro sobre azul, sobre o que há no mundo e que tipo de seres existem.
Todos os intelectuais contemporâneos, sobretudo os cientistas, deveriam passar os olhos por este tipo de literatura antiga. Os milhares de páginas deste espólio são atravessados pelo sentimento de evidência. Os seus autores sentem e acreditam que é evidente o que afirmam sobre o que está e se passa no mundo. Para nós, nada do que escreveram é evidente. Por exemplo, custa-nos a aceitar que uma das profissões mais nobres e elevadas do início da Modernidade fosse a de Demonólogo. No entanto, os demonólogos eram conselheiros de Príncipes e da Santa Sé. O que se alterou, pois? O mundo já não tem o que eles afirmaram que tinha? Nunca teve? Teve e deixou de ter? O mundo alterou-se ou fomos nós que nos alterámos? A hipótese que proponho é a de que as narrativas sobre o Mal e o Bem assinadas por Inquisidores e outros Controladores da Liberdade desempenham um papel importante na organização da vida.
O sistema de proibições e de permissões obriga à existência de controladores do comportamento de outrem. Não penso que a Biblioteca Negra da Europa seja importante pelos seus correlatos, isto é, pelas descrições que faz sobre o que existe e não existe. Penso que essa Biblioteca é importante porque mostra o modo de actuação do Poder. O realismo fantástico que caracteriza a Biblioteca Negra propõe uma tese radical sobre a liberdade dos seres humanos: tudo é possível, tudo mesmo, incluindo a violação das leis da natureza e da sociedade humana. Um símbolo eloquente dessa liberdade extrema encontra-se na figura da Bruxa. Esta liberdade superior ao que se pode pensar foi sempre sistematicamente combatida, violenta e militarmente combatida por muitos tipos humanos que simplifico na figura dos Inquisidores. Ao pensar na atracção fatal entre estas duas possibilidades de se ser um ser humano, não se pode deixar de pensar sobre o que está em causa.
A minha ideia é a de que o que está em causa no bailado histórico entre Bruxas e Inquisidores é o catálogo do que existe, do que está no mundo. As Bruxas queimadas e os Inquisidores que as queimaram têm em comum uma obsessão pela Realidade, sobre o que é e não é real, procurando as primeiras alargar a visão do real e esforçando-se os segundos para limitar o catálogo do real. O que eles nos deixaram foi uma maravilhosa e trágica Metafísica em movimento. Reafirmo o que disse no início: é muito provável que não tenha nada de interessante a dizer sobre assuntos que ultrapassam a minha inteligência e experiência. Só me dou ao incómodo de abordar estes temas porque estes assuntos não ultrapassam a minha curiosidade.

domingo, 2 de março de 2008

ENSINAR/APRENDER

Na próxima quarta-feira, 5 de Março, a Doutora Susana Moreira, docente do curso de Psicoogia, orientará um encontro sobre o dualismo 'ensinar-aprender', às 18h, na Faculdade de Filosofia, sala 3.1. O texto seguinte lança o debate:

Susana Horta Moreira

As questões relacionadas com o ensino e a aprendizagem têm passado, nas últimas décadas, por períodos de intensa polémica e consequente debate. Nestes ciclos de fulgurosa controvérsia ora são postos em palco os professores, os alunos, os pais e os ministros enquanto actores da senda da Educação no nosso país.
Várias têm sido as reformas educativas em Portugal nos últimos anos e, cada vez que é implantada outra, um novo ciclo de contestação se adivinha.

Presentemente, essa polémica não poderia estar mais acesa. Não obstante, e não desvirtualizando a importância das questões que estão a lume, tentaremos alhear-nos das mesmas, para que possamos reflectir com algum distanciamento e imparcialidade este dualismo que nos persegue: Ensinar/Aprender.
Primeiramente, abordaremos esta dicotomia numa perspectiva mais generalista da Educação para, numa fase posterior, direccionarmos esta discussão para o Ensino Universitário, por ser aquele que directamente nos implica.
(...)

As percentagens elevadas de insucesso e absentismo escolar constituem realidades que não podem passar indiferentes quer aos políticos, quer à sociedade civil, e particularmente aos agentes desse processo– professores, alunos e pais.
Parece sobremaneira consensual entre educadores (pais e professores), a convicção de que os alunos, independentemente do nível de escolaridade, dedicam pouco tempo ao estudo, e o escasso tempo em que o fazem parece não ser convenientemente aproveitado. Paralelamente, muitos alunos, quando ingressam no Ensino Superior, deparam-se com um abismo incalculável ao perceberem que não estão preparados para a exigência e trabalho autónomo que este nível de Ensino lhes impõe.

Perceber onde falha esta díade processual ensino-aprendizagem constitui, sem dúvida, o primeiro passo para o desenvolvimento de estratégias conducentes à resolução deste problema.
Em nosso entender, as inquietações dos intervenientes neste processo põem a descoberto o cerne da questão: os alunos não têm método(s) de estudo(s) porque os educadores não lho(s) ensina(m)! E, os educadores não lhos ensinam, a maior parte das vezes, não por falta de vontade ou profissionalismo, mas antes porque não foram preparados nem tiverem formação adequada para o fazerem.

A introdução de um tempo lectivo, não disciplinar, como o Estudo Acompanhado, no currículo do Ensino Básico, foi equacionada como uma das possíveis soluções para colmatar esta lacuna, não oferecendo resistência de maior por parte da comunidade educativa, dado o seu propósito bem intencionado – a promoção de métodos de estudo e de trabalho que permitam aos alunos realizar com autonomia a sua aprendizagem e desenvolver a capacidade de aprender a aprender (DEB, 1999).

Mas a implementação séria desta medida carecia de directrizes claras sobre as estratégias a aplicar, e uma adequada e oportuna formação dos docentes envolvidos no processo, o que não se verificando, traduziu esta prática em algo insípido e sem resultados visíveis e/ou generalizáveis. Na realidade, os resultados práticos dessa medida parecem ser pontuais e circunscritos a escolas, onde as suas direcções, com a ajuda de docentes empenhados e embrenhados no aprender a fazer, apostam autonomamente em implementar alguns dos parcos programas que existem no nosso país, que permitem trabalhar de forma consistente as competências de estudo e a aprendizagem auto-regulada (e.g., Rosário, 2004; Rosário, Núñez, & Pienda, 2006).

O desenho de soluções para estes problemas requer, a nosso ver, uma resposta crível à questão: Que orientações e que estratégias necessitam os nossos professores para que possam promover um ensino efectivo e aprendizagens proficientes?

Em nosso entender, a Psicologia da Educação pode e deve ter uma palavra a dizer sobre a questão em apreço.
Com efeito, a literatura sobre o processo de ensino-aprendizagem é pródiga na fundamentação teórica dos factores envolvidos no desenvolvimento de crianças e jovens autónomos e eficazes nas suas aprendizagens.

Uma das abordagens teóricas que mais se tem destacado nos últimos anos é a perspectiva sócio-cognitiva da aprendizagem, emergente no contexto do paradigma construtivista, que acentua o protagonismo do aluno nesse processo, sustentando que os conhecimentos apre(en)didos são essencialmente fruto de uma construção individual.
Esta abordagem teórica da aprendizagem defende ainda que o aluno não só é o construtor dos seus próprios conhecimentos, mas também alguém que pode ser capaz de monitorizar e reajustar as estratégias que melhor favoreçam os seus resultados e um percurso académico proficiente. Sustenta que a aprendizagem não tanto um resultado imediato das experiências e oportunidades do ensino, em si mesmo, mas antes uma consequência do ensaio e (re)ajuste pró-activo de estratégias que se revelam mais ou menos eficazes, acentuando a forma como o aluno empreende iniciativa, persevera e se adapta durante o processo de aprendizagem.

Assim, ao longo do seu percurso académico, o aluno deverá aprender um conjunto de estratégias que lhe permitam assumir a responsabilidade e o controlo pelo seu processo de aprendizagem, o que implica uma dinâmica cíclica de planificação, execução e avaliação das tarefas, dos resultados e das estratégias implementadas (Zimmerman, 1999, 2000; Zimmerman & Schunk, 2001).

Esta acentuação na pró-actividade do aluno, enquanto construtor dos seus próprios conhecimentos, capaz de monitorizar e reajustar as estratégias que melhor favoreçam os seus resultados e o seu percurso académico, vem reverter o foco da aprendizagem, que antes estava colocado na figura do professor e na sua pedagogia de ensino, e nos pais enquanto primeiros educadores.
Tais asserções não significam, contudo, que a importância do adulto no processo de ensino-aprendizagem seja negada. Na verdade, e independentemente do seu papel de pai ou de professor, o adulto é assumido como um mediador fundamental entre o aluno e o meio, sobretudo nas etapas mais precoces da aprendizagem.
Não obstante, a ênfase na autonomia e pró-actividade do aluno é considerada de forma gradativa e ajustada ao seu nível de escolaridade, pelo que assume particular relevância no Ensino Superior.

Esta perspectiva, aliás, vem de encontro aos princípios fundamentais do modelo de ensino-aprendizagem preconizado pelo Processo de Bolonha, impondo a alunos e docentes um enorme desafio: os alunos assumem o protagonismo na aquisição dos conhecimentos e no desenvolvimento de competências, e aos professores cabe o papel de os apoiar e orientar nas suas aprendizagens através do trabalho, individual e em equipa, que levam a cabo.

Numa reflexão mais aprofundada sobre estas questões, e abstraindo-nos da sua natureza cristã, damo-nos conta de que estas propostas encontram respaldo e similaridades com alguns dos princípios básicos da Ration Studiorum, Modelo Pedagógico da Companhia de Jesus que remonta ao séc. XVI, cuja aplicabilidade, no presente, podemos consubstanciar nas palavras de Lopes (2002, p.130):
A Ration Studiorum, hoje, pode ajudar o mundo da Escola, porque ela se centra no encontro pessoal entre o educador e o educando, num processo contínuo de interacção e comunicação; porque, ao individualismo, responde com a colaboração, com a ajuda recíproca, com o sentido de comunidade no aprender, como treino para o viver, porque quer que o aluno seja capaz de aprender a aprender por si próprio, durante toda a vida, que seja activo, interessado, participativo no processo educativo, e não mero recipiente de informações; porque ensina e valoriza a generosidade, o trabalho em equipa, a solidariedade; porque apela para uma educação integral, onde o aluno é convidado a desenvolver, equilibrado e harmonicamente, todas as suas faculdades intelectuais, afectivas e volitivas; [...]

Estas premissas parecem não deixar margem para dúvidas: Afinal,
parece que andamos a discutir a panaceia do “Ovo de Colombo” sem que ninguém tenha a coragem de equilibrar o ovo num dos seus extremos!
A actual conjuntura da Educação no nosso país requer mudança. Bolonha impõe mudança! Mudança nas metodologias de ensino-aprendizagem e mudança nos papéis dos seus principiais intervenientes neste processo. E, mudanças desta natureza despoletam necessariamente alguma incerteza e insegurança quer nos alunos, habituados a desempenhar um papel passivo no processo de ensino-aprendizagem, quer nos professores, que deverão abdicar da comodidade da função de meros transmissores de conhecimentos.

Tenhamos a coragem, professores e alunos, de nos predispormos à mudança com abertura, debate e espírito crítico para que, num processo de co-autoria, possamos aferir procedimentos conducentes aos desafios de Bolonha!

Referências Bibliográficas

Departamento da Educação Básica (1999). Gestão flexível do Currículo. Lisboa: Ministério da Educação.

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Zimmerman, B. J., & Schunk, D. H. (2001). Self-regulated learning and academic achievment: Theoretical perspectives. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

corpo-mente

O próximo debate sobre 'estes dualismos' terá lugar no próximo dia 27, às 18h, na Faculdade de Filosofia. O seguinte texto lança o debate.
Dualismo Corpo-Mente:
algumas reflexões introdutórias


João Carlos Major

Partindo da pressuposição de sermos apenas objectos físicos, ainda que assaz complexos, muitos investigadores defendem que o mental é um estado do físico e que a nossa vida psíquica pode ser reduzida ao produto de uma série de eventos físicos, químicos e eléctricos que ocorrem no nosso cérebro e em todo o corpo, o que cada vez mais parece ser corroborado pelas investigações que colocam de manifesto a influência do orgânico nos nossos estados mentais, pensamentos, emoções e afins.

Na senda do behaviorismo[1] e do positivismo lógico[2], as neurociências de hoje colocam cada vez mais a nu os sistemas neurais que nos permitem ter estados mentais e auto-consciência. Não é de estranhar, como tal, que as inúmeras descobertas do âmbito empírico sustentem as chamadas teorias da identidade, que postulam que os estados mentais não são apenas influenciados pelos estados cerebrais mas que são os próprios estados físicos do cérebro. E parece que os avanços da ciência vão dar, em parte, cada vez mais razão a esta posição. Por isso, uma das actuais linhas de investigação em neurociência procura identificar o correlato neural da consciência, dos comportamentos éticos[3], etc.

Tais teorias identitárias, levadas às últimas consequências, estão na base do materialismo eliminativista, o qual chama à atenção os casos bem sucedidos de pura eliminação de antigas teorias explanatórias, substanciadas, por exemplo, em hipotéticos elementos tal como o flogisto ― que era um fluido imaginado pelos químicos de outrora para explicar a combustão[4]. Assim, o materialista eliminitivista espera um desenlace semelhante, procurando a eliminação pura e simples das antigas ontologias explicativas de carácter dualista e substancialista em favor de uma teoria nova e superior, ansiando com o dia em que as neurociências estejam suficientemente amadurecidas para banir, de uma vez por todas, as nossas limitadas compreensões.

Vocábulos como “desejo”, “dor” ou “crença”, nada mais serão que fantasias emanadas das nossas estruturas neuronais; as mesmas que permitem a maior de todas as ilusões: a de possuirmos consciência, que agora passa a ser entendida como um mero epifenómeno. Por conseguinte, a linguagem da psicologia popular deveria ser abandonada em favor dos conceitos da neurociência. Tal eliminativismo é uma forma recente e radical de naturalismo materialista. Para este, tanto o mental como o corpóreo se apresentam como meras expressões linguísticas, partes de um mundo conceptual definido no âmbito da linguagem e sem um maior alcance do que isso.

Mais do que uma identificação de um com o outro, como faz a perspectiva identitária, o materialismo eliminitivista procura a eliminação de todas as antigas explicações e dos termos da psicologia do senso comum em prol de uma nova e radical forma de compreensão puramente científica[5]. Ainda que a psicologia popular, isto é, o esforço diário dos seres humanos em busca de uma compreensão simples e abrangente da realidade, em muitos casos funcione, podendo até ser o primeiro passo para uma compreensão reducionista, cientistas como Francis Crick[6] e filósofos a eles ligados, como Paul e Patricia Churchland[7], tendem a considerar esta estratégia como tempo perdido. Segundo eles, se o que almejamos é a redução, porque não iniciá‑la desde já? Então, urge olhar para dentro da caixa negra e observar como os seus componentes se comportam.

É a posição redutora a que apresenta mais adeptos no âmbito das fileiras da ciência. Afinal, aparece como a mais próxima da investigação empírica e dos factos da natureza.

Por outro lado, a corrente oposta – o fisicalismo não‑redutor[8]procura contrastar a crua declaração do fisicalismo redutor, na qual se defende que a natureza é tudo, e que da matéria veio tudo o que existe, sendo tudo explicado pela própria matéria e suas leis. Em sentido contrário, o fisicalismo não‑redutor pretende superar este tipo de visão pela defesa da existência de um nível ontológico superveniente à matéria, mas sem invocar qualquer tipo de dualismo.
Tal perspectiva considera que, pelo menos algumas propriedades de um nível mais elevado, em particular as propriedades cognitivas e/ou psicológicas, formam um domínio autónomo e irredutível ao físico. Isto significa que a psicologia é uma ciência especial cujo objecto é investigar as relações envolvidas nessas alegadamente irredutíveis propriedades e explicá‑las nos seus próprios termos. Desta forma, tais leis e explicações não poderão ser formuladas em termos puramente físicos. Por conseguinte, tal doutrina defende a autonomia da psicologia e, de uma forma genérica, a autonomia das ciências especiais em relação à física de base.

Neste contexto, frequentemente é evocada a noção de “emergência”, que é o processo de derivar novas e coerentes estruturas, padrões ou propriedades (em especial a consciência e a intencionalidade) de um sistema complexo. Os fenómenos emergentes ocorrem devido ao padrão de interacções entre os elementos de um sistema ao largo do tempo. Tais fenómenos são normalmente imprevistos, são o resultado não esperado de interacções relativamente simples entre componentes também relativamente simples. Neste sentido, o que distingue um sistema complexo de um meramente complicado é que os padrões de funcionamento e os comportamentos de um sistema complexo emergem como o resultado das relações de elementos menos complexos e, até, elementares. Assim, as características emergentes surgem quando um número de entidades simples, ou agentes, operando em conjunto, manifestam comportamentos mais complexos, fazendo com que um sistema composto de elementos mais simples produza propriedades que as suas partes constituintes em si não possuem. Para complicar ainda mais, estas novas propriedades aparentemente possuem poderes causais sobre o que as rodeia e, por vezes, sobre os seus próprios elementos de base.

Um exemplo de emergência é o da água (H2O). A água pode encontrar‑se macroscopicamente em diferentes estados físicos (sólido, líquido e gasoso), mas as moléculas que a constituem (o hidrogénio e o oxigénio) não possuem tais propriedades. O comportamento complexo ou as propriedades emergentes não são uma característica dos agentes considerados individualmente, nem podem ser, normalmente, preditos ou deduzidos do comportamento das entidades mais baixas de tal hierarquia. É a partir da organização e da interdependência entre as várias moléculas que constituem a água que a emergência de tais características acontece, ainda que não sejam compartilhadas por nenhum dos gases isoladamente, mas surgem porque passaram a pertencer a um sistema de um nível hierárquico superior: o da água.

O número e a subtileza destas propriedades pode ser, por conseguinte, muito maior à medida que se aumente o número de agentes. É o que acontece quanto ao número de modos com que podemos empilhar objectos num determinado local, o número de modos aumenta exponencialmente se formos aumentando o número de objectos. Por sua vez, as propriedades emergentes podem surgir não apenas entre as partes simples de um sistema, mas também entre propriedades já de si emergentes, elevando a complexidade, porventura, para além da capacidade do intelecto humano.

De acordo com esta visão emergentista e sistémica, pode dizer‑se que a mente emerge das conexões entre os neurónios e, desde uma tal perspectiva, não é necessário pressupor a existência de uma “alma” para explicar o facto de um cérebro poder ser inteligente, mesmo que os neurónios considerados isoladamente não o sejam. Embora a mente (como a inteligência e a auto‑consciência) seja um processo acrescido dos processos cerebrais, não existe fora da nossa membrana, que é a pele. Ou seja, não é uma substância que existe “lá fora”, como em Descartes, onde tem uma substancialidade à parte.

O problema parece surgir quando tais propriedades sistémicas ou emergentes parecem ganhar vida própria, passando, aparentemente, a ter um estranho controlo ou poder causal sobre as suas partes constituintes.

É sobre estes e outros aspectos que procuraremos reflectir na palestra do próximo dia 27.

[1]Que não procurou “negar” a existência dos estados mentais, antes desejou aplicar os cânones da ciência, isto é, os ideais de previsibilidade e controlabilidade, na consideração dos eventos privados, no sentido de tornar científico e sistemático o projecto de pesquisa da conduta humana.
[2]Que influenciou a posição behaviorista na medida em que o significado de uma sentença estaria ligado ao exame das circunstâncias observáveis, o que levaria a verificar a validade de uma sentença proferida.
[3]Cfr. Steven Marcus (Ed.), Neuroethics: Mapping the Field (San Francisco: Dana Foundation, 2002).
[4]As investigações de Lavoisier, completando os trabalhos de Priestley e Cavendish, destronaram a teoria do flogístico ou flogisto, interpretando correctamente calcinações, combustões e outras reacções de oxidação, lançando deste modo os fundamentos da análise orgânica quantitativa. As suas teorias tornaram‑se conhecidas através do Traité Élementaire de Chimie, publicado em 1789.
[5]Cfr. Paul Churchland, Matter and Consciousness, p. 43.
[6]Cfr. Francis Crick, A Hipótese Espantosa: A Busca Científica da Alma (Lisboa: Instituto Piaget, 2000).
[7]Patricia Churchland, “Can Neurobiology Teach Us Anything About Consciousness?”, in Harold Morowitz; Jerome Singer (Eds.), The Mind, The Brain, and Complex Adaptive Systems (Reading: Addison‑Wesley, 1995), pp. 99‑121.
[8]Por vezes chamado de “dualismo de propriedades” (cfr. Jaegwon Kim, “Physicalism”, in Robert Wilson; Frank Keil (Eds.), The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, p. 645).